quinta-feira, 22 de março de 2012

O BIÓGRAFO E O BIOGRAFADO

Depois do coquetel na livraria, ele finalmente se dirigiu para o aconchego do lar. Tapinhas amigáveis nas costas, apertos de mão, dedicatórias, fotos, entrevistas... ufa! O dia terminou! Mas foi mais um dia produtivo, alavanca na carreira de escritor, motivação para futuras obras.
O sucesso com as edições de um livro biográfico sobre um jogador de futebol dos anos 40 deu muito pano para manga. O detalhe é que o craque biografado fora extremamente temperamental, polêmico, contestador e contestado, apesar de ter se destacado pela intimidade que tinha com a bola e a figura interessantíssima fora dos gramados. Biografar uma personalidade assim não é para qualquer pessoa. Mas o escritor não era qualquer pessoa, simplesmente não estava preparado para o que aconteceria exatamente naquela noite.
Depois do chuveiro e do lanche, não resistiu. Foi ao computador checar a repercussão do evento na Internet e ler as mensagens de congratulações. Mas, esgotado, terminou por cochilar na cadeira do escritório.
Ao fechar os olhos, ouve uma voz:
-"Belo trabalho, escritor!"
Assustou-se, pensando haver alguém perto. Não havia! Olhou freneticamente em volta e nada. A voz manifestou-se novamente:
-"Eu estava mesmo precisando dessa massagem no meu ego. Achei que as pessoas tinham me colocado definitivamente no ostracismo, mas graças a você voltei a ser o centro das atenções, algo que sempre agradou-me , confesso. Mas você sabe disso, não?"
O escritor, ainda um pouco assustado, identificou a direção da voz e viu o craque materializado, sentado numa poltrona, usando terno, pernas elegantemente cruzadas e sorriso nos lábios. Jamais um espírito havia se manifestado tão contundentemente em sua vida, mas havia um motivo para isso.
-"Não acredito no que estou vendo!" disse o escritor.
-"Pois acredite, meu caro." Respondeu o biografado. "O pouco tempo que passei aqui na terra deve ter sido extremamente significativo a ponto de merecer uma biografia! E olhe que minha passagem deu-se em menos de 40 anos!"
-"Perfeito... pessoas fazem aniversário aos 100 anos, embora isto não signifique viver todo esse tempo." Respondeu o escritor, já refeito do susto e achando normal a surreal conversa.
"Sem dúvida! Tu me conheces bem e sabes que não encaixo-me nesta categoria. Deliciei-me em cada segundo de minha vida e deliciei também as pessoas com meu futebol e minha personalidade. Na realidade, gostaria de ter vivido mais um pouco, atuado em mais partidas, amado mais mulheres..."
-"Não viveste o suficiente?" Indagou o escritor.
-"A resposta está nas mãos de Deus, então creio que sim. A propósito, gostaria de fazer-me alguma pergunta?"
-"Acho que aproveitarei sua visita. Alguma coisa no livro te aborreceu?"
-"Qual nada! Você é uma exceção nos biógrafos! Jamais me materializaria para você de um modo amigável como estou fazendo no momento se fosse de outra forma. Fizeste um trabalho exemplar e bebeste nas fontes certas. Transformaste-me literalmente em páginas! Vim aqui apenas dar-te meus parabéns, escritor!"
-"Estou maravilhado com esse momento! Daqui a alguns dias será lançado também seu filme."
-"Sim, estou ciente. Sempre adorei cinema, e até achava que poderia ser tema de um filme, um dia. Conheces Gilda, com Rita Hayword? Um dos meus prediletos!" Disse o craque, rindo. Fez o escritor relaxar e sorrir também:
-"Esse filme é a sua cara! Inclusive tenho guardado aqui em meu computador."
Ao desviar o olhar para a tela, de repente falta luz na casa do escritor. Apenas por 9 segundos, o suficiente para a despedida súbita do craque. E para a conclusão do escritor, num tom de satisfação:
-"Definitivamente, missão cumprida."
E com a volta da luz e a falta de sono, chega para o escritor motivação para uma futura obra. A transcedental visita do craque lhe inspirara. Os escritores são assim. Não há sono que lhes tire a sede da sopa de letras.

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