sexta-feira, 9 de julho de 2021

 ODISSEIA A QUINTINO




Beto e José Miguel eram como unha e carne. Vizinhos do mesmo prédio em Ipanema, cada um com 12 anos de idade, peladeiros e torcedores do Flamengo e de Zico Futebol Clube, não podiam ver uma bola rolar. Porém, uma das maiores frustrações dos garotos era jamais terem ido ao Maracanã e sequer terem visto seu ídolo, mesmo de longe, aquele o qual estavam limitados a ouvir seus gols no rádio e ver na televisão, explodindo-os de alegria. Mas esse sonho estava prestes a se realizar, na mente de Beto. 

Os locutores haviam apelidado Zico de o “Galinho de Quintino”, então Beto questionava-se “aonde diabos fica Quintino?”, pois seus limites jamais iam além do bairro da Glória. Depois soube que Quintino Bocaiúva era um bairro no subúrbio carioca, bem distante de Ipanema.

Chamou seu amigo de todas as aventuras: “Zé Migué! Topa ir a Quintino comigo?”

Miguel, menos sonhador e mais prático, perguntou-lhe: “Fazer o quê em Quintino, Beto? E aonde fica isso?

“ - Cara, vamos conhecer nosso ídolo pessoalmente! Ele mora em Quintino, um bairro na zona norte. Já sei como ir lá!”

Na tarde de sexta-feira, depois da escola, Beto pegara um mapa do Guia 4 Rodas de seu pai e estudara a geografia dos bairros do Rio, fazendo uma rota imaginária Ipanema-Quintino. Conseguira saber através do inspetor do seu colégio, que morava no Méier, como fazer para chegar. Na noite do mesmo dia, expôs ao amigo seu plano de viagem.

“ - Olha só esse mapa.” Esticou um imenso mapa, quase do tamanho do chão de seu quarto “ - Falei com seu Waldir, que mora no Méier, um bairro próximo. Ele me disse que o Zico mora na Rua Lucinda Barbosa. Olha aqui a rua!” Disse, ao mesmo tempo que apontava o dedo para a rua no mapa.

“ - Beto… a gente vai se perder, nunca saímos da Zona Sul, nem mesmo com nossos pais. Larga essa ideia pra lá, cara!”

“ - Pô, Zé Migué, deixa de ser mocinha! Tá com medinho? Te chamei pra ir comigo porque somos parceiros, mas se você não quiser eu vou sozinho, tiro uma foto com o Zico, pego um autógrafo só pra mim, e você vai se arrepender, hein!”

E Beto falou tão convincentemente para o amigo, e tanto falou, tanto argumentou, que Miguel acabou topando, pois a vontade de fazer companhia para o grande amigo, num sentido protetor, era maior até do que conhecer o grande camisa 10 da Gávea. Apertaram as mãos e combinaram a viagem para a manhã do dia seguinte, sábado, às 8:00h.

Nessa noite, Beto sonhara que disputava uma pelada trocando passes e dando e recebendo assistências junto ao ídolo, tendo como escudeiro seu amigo e companheiro de todas as peladas, “Zé Migué”.

Sábado, 8:00h. A campainha da casa de Beto tocava. Era o amigo, pontual, preparado para a aventura. A empregada anunciava:

“ - Beto! José Miguel chegou!”

Miguel entrou no quarto do amigo, cujas paredes eram forradas de pôsteres do Flamengo e um especial da Revista Placar do ídolo de ambos. Para diferenciar, um poster da Bruna Lombardi, sua paixão platônica. Cuidadosamente, Beto o retirou da parede, enfiou num tubo de papelão. Estava destinado para um autógrafo do ídolo.

“ - Esse não volta sem a assinatura do Galinho.”

Tomaram o rumo da Visconde de Pirajá, não sem antes Beto comunicar à mãe:

“ - Mãe, vou bater uma bola com Zé Migué!”

“ - Tá bom, filho. Não se atrase para o almoço, ok?”

“ - Pode deixar, mãe!” Mentia.

Pegaram o 154 Ipanema-Central, e no caminho, Beto informava ao amigo a rota, na qual pegariam um trem na Estação Central do Brasil e saltariam em Quintino. No caminho, conversavam sobre o ídolo:

“ - Zé Migué, Zico vai arrebentar na Copa da Argentina! Vai ser o artilheiro do Brasil e vamos ser campeões graças a ele!”

“ - Copa na Argentina não vai ser mole. Porrada vai comer, mas ele dribla até isso.”

“ - Só que ele tem que ser o camisa 10, como é no Mengão!”

A viagem dava para repassar toda a carreira de Zico até então. Passavam por vários bairros, até finalmente desembarcarem no ponto final.

Um pouco confusos, já que jamais sequer viram um trem, foram orientados por um funcionário em qual  deveriam embarcar. Agradecidos, partiram. Já não conversavam no caminho, ansiosos e temerosos, e Quintino parecia ficar em outro planeta. Miguel prestava atenção a cada estação, quando finalmente chegaram a Quintino.

Desceram do trem como se estivessem galgando os degraus do vestiário rumo ao gramado do Maracanã, cada um vestindo uma camisa do Flamengo, e ambas com número 10.

“ - Chegamos, Zé Migué!”


E após saírem da estação era hora de procurar a Rua Lucinda Barbosa.

Um jogador como Zico, que em sua carreira era presença obrigatória nos jogos da Seleção Brasileira e nos amistosos caça-níqueis que engordavam o cofre de seu clube, dificilmente parava em casa. Seus descansos com a família eram raríssimos. Mas isso nem passava pela cabeça dos meninos. Principalmente na de Beto.

“ - E agora, Beto? Como achamos a rua?”

Beto, então senhor da situação, já transpirava um pouco de insegurança.

“ - Vamos perguntar pro jornaleiro.”

O rapaz informou que a rua ficava do outro lado que saltaram da estação. Quase desistindo, observando o horizonte de fios elétricos e postes no calor carioca, resolveram dividir um refrigerante num bar antes de prosseguirem a via crúcis, para lhes dar um pouco de força para seguirem em frente.

Viam moleques jogando uma pelada numa pracinha, mas nem tiveram coragem de pedir para entrar um de cada lado.

Subiram a quase interminável escadaria que ligava os lados da estação nas ruas paralelas e finalmente chegaram na rua aonde nascera e morava um cidadão chamado Arthur Antunes Coimbra, um tal de Zico.

“ - Zé Migué, que emoção! Sabe o que significa estarmos a um passo de conhecer o maior ídolo da história da Gávea?”

Sempre racional, Miguel observou:

“ - Pois é, Beto. Espero que ele esteja em casa.”

Agora, o último desafio: qual era a casa?

“ - Senhor, boa tarde.” Cumprimentara Beto a um idoso, sentado no portão de uma humilde casa, com o relógio já informando passar da uma hora da tarde.

O velho estudou os dois meninos uniformizados, expressões cansadas, e respondeu calmamente:

“ - Boa tarde, filho. No que posso ajudá-los?”

“ - Poderia nos informar aonde fica a casa do Zico?”

O velho olhou para o lado direito da rua, apontou uma casa com varanda, cuja porta já pedia uma demão de tinta, e lhes respondeu:

“ - Olha, filho, a casa da família dele é aquela branca e azul. Mas acho muito difícil vocês o encontrarem em casa, a não ser que deem sorte que ele esteja visitando os pais.”

Já 90% desanimado, e com poucas forças até para falar, Beto questionou:

“ - Mas, senhor… não é lá que ele mora?”

“ - Bem, morou desde que nasceu. Mas depois que se casou com a Sandra, foram morar em outro bairro.”

“ - Aonde?”

O homem olhou para o alto, como se buscasse a resposta, passou a mão na barba rala e branca, e respondeu com a típica tranquilidade dos velhos na voz:

“ - Olha, se não me engano… ele foi morar lá em Ipanema, na Zona Sul.”

Já com 100% de desmotivação, e com um José Miguel se segurando para não dar uma bronca no amigo, Beto agradeceu ao velho e partiram de volta para casa.

Sem falarem uma palavra um com o outro, chegando à Central, Beto resolveu falar o que estava engasgado:

“ - Tá vendo só, Zé Migué? O Zico está morando no nosso bairro, e se vacilar é a algumas quadras da gente!! Se sabem que fizemos essa viagem à toa e pagamos esse vexame, vão nos zoar para o resto da vida!!”

Miguel, mesmo com alguma força adquirida graças a um salvador cone de amendoim comprado no vagão do trem, preferiu se calar, e apenas alertar o amigo para entrarem logo no ônibus que os levaria de volta à Ipanema, fugindo de olhares pouco amigáveis de pivetes que habitavam as ruas e praças da região.

O sol do sábado no Rio de Janeiro estava se pondo. Um domingo, como muitos em que Zico fez a alegria da torcida rubro-negra no Maracanã, já se preparava para pedir licença ao sábado para substitui-lo. 

Já em casa, refeito da viagem e do vexame, Beto pegava na mesinha do telefone as páginas brancas do grosso e pesado livro da Companhia Telefônica para tentar descobrir o endereço de um cidadão chamado Arthur Antunes Coimbra.


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